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Privacidade digital: direito ou necessidade?

Os dados já são um dos recursos mais valiosos do planeta. Há mesmo quem garanta que são estratégicos para vencer a próxima guerra, que será travada não nas trincheiras em campo aberto, mas no mundo digital. Estes dados alimentam algoritmos, algoritmos esses que têm o potencial para mudar o mundo como hoje o conhecemos.

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‘Mais dados’ = ‘mais poder’
Um ‘véu’ de privacidade pode proteger potenciais abusos, sendo que a tendência actual é estabelecer e estender os direitos de privacidade em benefício dos cidadãos. Isso reduz a vitimização, manipulação e exploração digital, protegendo dados confidenciais e permitindo actividades que promovem a liberdade de expressão.

Sem leis, governos e empresas desenvolveram práticas que alavancam o poder de recolher informações confidenciais e usá-las em proveito próprio. Novas leis de privacidade, como o Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD), estão a mudar o cenário, com muitas empresas a serem mais conservadoras e respeitosas. Ou, pelo menos, essa seria a intenção.

Alguns governos e agências também estão a reduzir a recolha, limitando a retenção ou encerrando programas domésticos considerados invasivos pelos cidadãos. Ao mesmo tempo, as agências de aplicação da lei desejam reter recursos para detectar e investigar crimes, para proteger a segurança dos cidadãos.

Mas a privacidade também é, obviamente, mal utilizada. É a ferramenta preferida para quem comete crimes e permite que actos hediondos contra outras pessoas não sejam detectados, para além de permitir uma ampla coordenação de fraudes e abusos.

Backdoors e chaves-mestras
Argumenta-se que as backdoors digitais, chaves-mestras e algoritmos de criptografia que obtêm acesso a sistemas e informações privadas ajudariam na detecção legal de actividades criminosas e em investigações para identificar terroristas. «Embora isso pareça uma óptima ferramenta contra criminosos, é uma caixa de Pandora», revela Manuel Sampaio, consultor na área da segurança. O problema tem, por isso, uma dupla face.

Backdoors e chaves-mestras não limitam o acesso a uma investigação específica onde existe uma causa provável, mas permitem uma ampla vigilância e recolha de dados de uma população inteira, incluindo cidadãos cumpridores da lei. «Isso viola o direito à privacidade das pessoas e abre as portas para a manipulação e acção política. A capacidade de ler todos os textos, e-mails, mensagens e conversas on-line para “monitorizar” a população cria um caminho claro para o abuso. O risco de controlo e exploração é real», garante Manuel Sampaio.

Mesmo para aqueles que não têm objecção ao acesso do governo, Manuel Sampaio defende que deve ser considerado o facto de que essas backdoors e chaves-mestras sejam procuradas por criminosos cibernéticos e outros actores do Estado-Nação. «Nenhum sistema é infalível. Eventualmente, essas ferramentas seriam encontradas e usadas pelos criminosos em detrimento da comunidade digital global. Algumas backdoors podem valer dezenas de milhões de euros para o comprador certo, pois podem libertar um poder inimaginável para aproveitar a riqueza, afectar pessoas, prejudicar nações, minar a independência e sufocar o pensamento livre».

Proteger a privacidade não é, por isso, ocultar informações. «Trata-se da capacidade de estar livre de influências indesejadas, tirania e de se comunicar com outras pessoas de maneiras que desafiam o status quo. A privacidade protege os indivíduos, mas também os fundamentos de uma sociedade livre» diz o sociólogo Carlos de Almeida.