Entrevista

«Estamos a introduzir máquinas para substituir o trabalho repetitivo cognitivo»

Entrevista a Paulo Dimas, CEO do Center for Responsible AI.

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No Center for Responsible AI, a inteligência artificial não é vista como uma ameaça aos empregos, mas sim como uma ferramenta para automatizar tarefas repetitivas e libertar tempo para actividades de maior valor humano. A ideia é de Paulo Dimas, CEO do consórcio Center for Responsible AI.

Quais são as linhas mestras do Center for Responsible AI?

A principal é criar um ciclo virtuoso que junta a investigação fundamental com as startups que desenvolvem produtos baseados em inteligência social responsável para problemas muito reais, seja da indústria, dos hospitais, das organizações nacionais e internacionais. No fundo, o que fazemos é avançar em áreas estratégicas da inteligência artificial, em particular as relacionadas com a inteligência artificial responsável, que podem ser definidas em quatro pilares principais: o da sustentabilidade, o da privacidade, o da equidade e o da confiança. Este último está relacionado com uma tecnologia, a explicabilidade, que é a inteligência artificial a poder-se explicar. Temos, então, estas quatro linhas de investigação a ser desenvolvidas e, depois, interceptando essas linhas de investigação, temos produtos concretos, que chegam à vida das pessoas.

Estamos a falar em que tipo de soluções?

Por exemplo, enquanto um médico está a falar com um paciente, o produto baseado em inteligência artificial vai estar a transcrever essa conversa. O objectivo é, depois, gerar um relatório e, com isso, poupar o trabalho administrativo do médico. Temos outro produto que vai permitir que um doente com esclerose lateral amiotrófica possa ter uma conversa com o seu cuidador ou com a sua família, usando a sua própria voz. Há um outro produto que pode ser usado nos hotéis – está em projecto-piloto no Grupo Pestana, um dos líderes da indústria – que vai permitir que, nas unidades hoteleiras, todo o processo de reconhecimento de documentos seja muito mais rápido e, portanto, fazer com que o check-in num hotel seja um processo mais fluido. Estes produtos estão a ser, de certa forma, acelerados em Portugal, com as oportunidades que existem de parceria, para depois serem internacionalizados. O objectivo é conseguir fazer crescer as nossas exportações, a nossa economia e criar valor, para que se atraia talento. Portanto, um dos objectivos é também a atracção e retenção de talento, principalmente talento jovem altamente qualificado.

Podemos então dizer que o objectivo é materializar conceitos?

Sim, até porque, para muita gente, a inteligência artificial ainda é quase um conceito. Estamos, agora, finalmente e efectivamente, a ver a sua aplicação de uma forma “real”. Todos sabemos que a IA já é aplicada há muitos anos, mas, aos olhos do consumidor final, neste momento, é mais, digamos, entendível, claramente, pelos recentes avanços naquilo a que se chama de ‘IA generativa’. Ou seja, aconteceu a partir do momento em que pudemos passar a interagir com a inteligência artificial usando a nossa própria linguagem.

Basicamente, não temos necessidade de aprender algo de novo, basta escrevermos como se estivéssemos a interagir com uma pessoa. Se reparar, pedir a um modelo de inteligência artificial generativa para realizar uma tarefa é o mesmo que estar a pedir a uma pessoa, porque a comunicação é feita usando a linguagem natural, a nossa própria linguagem. A partir daí, as barreiras de utilização baixaram muito; estamos, portanto, numa fase em que, de facto, a inteligência artificial se democratizou. Hoje, podemos assumir que qualquer pessoa pode tirar partido da IA.

Acredita que esta generalização ou democratização do uso de inteligência artificial veio de alguma forma aportar mais valor às PME? Pode ser uma alavanca para um maior nível de competitividade?

Sim, sem dúvida. Nas só nas PME, mas teambém nas organizações em geral, vai haver uma grande transformação ao nível da produtividade relacionada com o que se chama de tarefas cognitivas, ou seja, as tarefas que implicam a ‘inteligência’. Muitas exigem, por exemplo, a parte do processamento de documentos, a leitura de documentos em grande quantidade, preparar uma apresentação com base em dados que foram recebidos, escrever um e-mail que seja um relatório do preço de um projecto: todas estas tarefas vão ser muito aceleradas.

Aliás, às vezes, até eram muito difíceis de serem feitas por humanos, porque temos limitações na capacidade de assimilação, por exemplo, de documentos e de pesquisa. Hoje, isto pode ser tudo feito em questão de minutos, portanto, é transversal a todas as organizações. Respondendo directamente à pergunta, sim. Vai haver uma transformação ao nível, não necessariamente das profissões, essa parte é importante, mas ao nível de tarefas que essas profissões desempenham.

Que exemplos podem ilustrar esta transformação?

Gosto muito de dar o exemplo da profissão de radiologista. Até o Prémio Nobel da Física, Geoffrey Hinton, dizia, em 2016, que a profissão de radiologista ia desaparecer. Mas a verdade é que, passados nove anos, ainda não conheço um radiologista que tenha perdido o emprego. O que, de certa forma, foi impactada, automatizada e aumentada, foi a capacidade de um radiologista interpretar raios X. Mas o radiologista continua a falar com outros médicos, com pacientes e a tomar decisões no hospital sobre a próxima máquina que vai comprar. Todas estas tarefas, que fazem parte do conjunto que um radiologista desempenha, não vão ser substituídas. Tudo aquilo que tem que ver com a empatia humana, por exemplo, é algo que não vai ser substituído, simplesmente não é possível de ser replicado. Este é um aspecto muito interessante desta revolução e que cada vez fica mais claro: o que vai ser automatizado são as tarefas mais repetitivas que são, na prática, quase mecânicas. Quando foi a Revolução Industrial, introduzimos as máquinas para substituir o trabalho manual humano. Hoje, estamos a introduzir máquinas para substituir o trabalho repetitivo cognitivo.

Então, quais serão as competências do futuro?

Serão aquelas onde nos vamos diferenciar: as de empatia e as mais próximas daquilo que é ser humano. Na prática, vamos usar a inteligência artificial como uma ferramenta, libertando mais tempo para interagir com outras pessoas. Aí, vão ser os valores humanos que nos vão diferenciar.

Como se leva um conceito para o mercado? Ou seja, como se materializa um conceito que, muitas vezes, nasce no mundo académico e de investigação? Como se interliga o ecossistema academia e mundo empresarial ou indústria?

Funciona a vários tempos. Há um primeiro que é a validação da ideia, que tem de acontecer o mais rapidamente possível. Isto deve ser feito aplicando essa ideia à resolução de problemas concretos, através de protótipos e do investimento mínimo tecnológico que permita validar essa ideia. Devem ser desenhadas experiências que são realizadas através de protótipos e que vão validar se, de facto, esta tecnologia vai ajudar, por exemplo, os médicos numa consulta onde queremos retirar o essencial da conversa entre o médico e o paciente. Vamos testar essa tecnologia neste contexto. A partir daí, e uma vez validada a uma escala pequena, tentamos alargar a uma escala maior – que nunca é muito grande – para podermos fazer aquilo que se chama, no fundo, a co-inovação.

As parcerias são o maior factor de sucesso?

Sim, temos de inovar muito em parceria com os utilizadores dessa tecnologia. Por exemplo, no caso daquele produto que referi relacionado com a esclerose lateral amiotrófica, o Halo, estamos a desenhá-lo em conjunto com os pacientes. Basicamente, os vão-nos pedindo as funcionalidades que gostariam de ver, como a componente da voz, que foi absolutamente determinante. Agora, estão-nos a pedir mais formas de criar memórias; tudo isto é desenvolvido em estreita colaboração com os próprios utilizadores. Uma vez validado e tendo um produto que resolve aquele desafio de forma muito boa, começamos a alargar a nível do mercado, com mais utilizadores e sempre a pensar na componente de exportações. Daí o DNA do centro ser o das scale-ups, startups que já passaram por uma fase de grande crescimento e que exportam mais de 95% do que criam. O que queremos é transferir este DNA, esta visão e ambição para startups mais pequenas; queremos que, daqui, saiam as próximas Sword Health, Unbabel ou Feedzai.