Entrevista

«O desafio da inovação é unir a necessidade das pessoas à tecnologia»

Entrevista a Sérgio Salustio, responsável de I&D da Bosch Ovar.

Desenvolver tecnologia para a sociedade. Para melhorar a forma como as pessoas usam os recursos, como desfrutam do que têm à sua volta. Esta é a missão da Bosch desde a sua fundação, há 120 anos. Sérgio Salustio, responsável de I&D da Bosch Ovar, garante que esse compromisso continua a ser válido nos dias de hoje.

Hoje, como podemos definir a actuação da Bosch no mercado?

A Bosch beneficia de uma visão extraordinária. E define-se hoje como se definiu há 125 anos: uma empresa que desenvolve tecnologia para a vida. Esse é o nosso lema, sempre foi, mesmo aquando da fundação, por Robert Bosch. Um lema que é perfeitamente actual, pois o que fazemos é precisamente desenvolver tecnologia para melhorar a vida das pessoas. Foi sempre assim, desde o primeiro minuto.

A tecnologia que desenvolvem é apenas para a Bosch?

Basicamente, desenvolvemos tecnologia para a sociedade, para melhorar a forma como as pessoas usam os recursos, como desfrutam do que têm à sua volta.

Mas os desafios mudaram…

Os desafios mudaram, sim. O nosso mote é perfeitamente actual e mantém-se, mas os desafios de há duas ou três décadas são completamente diferentes. Antes, penso que a questão era essencialmente proporcionar novas experiências, novas capacidades, novas oportunidades. Hoje, acho que a tecnologia tem um papel ainda mais importante: resolver contradições. Porque para vivermos melhor, temos de consumir mais recursos, temos de gastar mais energia, o que causa impacto no planeta. O desafio passa por, ao invés de prescindir dos benefícios que temos conquistado, aumentar esses benefícios, reduzindo o seu impacto. Diria que essa é a nossa principal missão.

Há dois anos, investiram num novo centro de competências em Ovar. Qual é o seu papel?

Nasceu exactamente desta visão, de que cada vez mais o que fornecemos são serviços, soluções e não produtos. Ovar nasceu como uma fábrica, ainda o é, mas cada vez mais pensamos no impacto que necessitamos de criar junto das pessoas. Cada vez mais falar em experiências, serviços e não em produtos, daí o nosso lema não estar nada desactualizado.

Qual a estratégia?

A estratégia deste centro de desenvolvimento é estender o valor acrescentado que uma fábrica poderia trazer. Enquanto fábrica, conseguimos entregar produtos e componentes que as pessoas vão utilizar, mas cada vez o objectivo é reutilizar e manter esses produtos actuais ao longo do tempo. Daí a componente de desenvolver soluções, software que possa servir para actualizar esses produtos ao longo do tempo, que leve a uma minimização dos recursos e à extensão do seu tempo de vida. Tudo isto levou, quase que obrigou, à introdução de novas competências, novas funções, que implicam o desenvolvimento e a manutenção de novas ideias. Ou seja, uma parte muito importante do centro, desde o seu início, tem a ver com a parcela do software, do digital, que é uma grande aposta e prioridade. Mas também, porque ainda somos muito físicos, e não apenas virtuais, produzimos o suporte material a tudo o que queremos desenvolver.

Quais os grandes desafios que o ecossistema da inovação enfrenta?

O desafio da inovação é unir a necessidade das pessoas à tecnologia. Um desafio que é geral, universal e que depois pode ter impactos locais. A inovação resulta do casamento entre tecnologia e aplicação. Muitas vezes, o que pensamos estar a fazer é inovação, quando, na verdade, o que estamos é a desenvolver tecnologia. Nesse ponto, acho que Portugal deu passos muito importantes. Nos últimos vinte anos, demos saltos significativos naquilo que é a nossa capacidade de desenvolver funções tecnológicas, desenvolver coisas.

Mas, para haver inovação, essa tecnologia tem de servir um propósito, resolver um problema e para isso é preciso conhecer o mercado e identificar as necessidades. O que se torna uma dificuldade porque esse mercado é cada vez mais global. Ou seja, a globalização veio trazer, de facto, oportunidades mas veio introduzir um desafio à inovação porque é preciso conhecer o mercado. Temos a Ásia e os Estados Unidos a definirem tendências e Portugal a ter alguma dificuldade em estar imerso nessas tendências.

A tecnologia é capaz, hoje, de resolver quase todos os nossos problemas? Ou seja, o desafio está na aplicação da tecnologia?

A grande dificuldade é que não se pode dividir a tecnologia da aplicação. As grandes inovações, os grandes avanços, vêm da mistura quase indissociável da aplicação e da tecnologia. Há tecnologia que é criada por se pensar de forma diferente, aplicando aquele chavão de ‘pensar fora da caixa’. Penso que não há tecnologia para tudo, mas há potencial para, pensando de maneira diferente, chegar a novas soluções e mesmo novas tecnologias.

Como é que a Bosch nos pode surpreender?

A surpresa vem sempre do chegar onde as pessoas nunca imaginariam ser possível.

Mas isso hoje é muito complicado, porque as pessoas têm as suas expectativas muito altas.

Podemos surpreender, tornando as coisas acessíveis às pessoas. Hoje, o mundo é tão acelerado e mediatizado que, muitas vezes, o que se faz é a projecção de ideias, de sonhos ou de potencial, o que é importante porque nos movemos pelos nossos sonhos e projectos. Mas o que ainda surpreende as pessoas é ter essa tecnologia acessível, que a consigam utilizar, desfrutar dela.

Penso que conseguimos surpreender porque conseguimos simplificar a vida das pessoas, fazemo-lo com algumas das soluções que estamos a desenvolver, fazemo-lo com a combinação dessas soluções para que elas estejam presentes no dia-a-dia. Tornar acessíveis coisas que, em princípio, são apenas conceitos, ideias, mas que não estão verdadeiramente disponíveis.

Continua a ser complicado recrutar recursos humanos?

Não tem sido fácil recrutar. Felizmente, também não tem sido muito difícil. Talvez o mais correcto seja dizer: tem sido possível recrutar. Penso que, aqui, beneficiamos do nosso próprio legado, da nossa própria herança e conseguimos ser atractivos às pessoas que querem imaginar o mundo de forma diferente, que querem inventar, deixar a sua marca pessoal, contribuir para criar novas coisas. Isso é algo que atrai muita gente e é esse tipo de pessoas que queremos atrair.

As pessoas sabem que, na Bosch, têm essa oportunidade, que se podem juntar a um projecto que, mais tarde, vão poder ver na rua, numa loja ou em casa dos amigos. Acho que isso é uma proposta irresistível. Isto têm-nos ajudado a ultrapassar o problema do recrutamento, que é comum a todos, sobretudo na área da engenharia em geral e de forma muito particular a engenharia electrónicas e ciência da computação.

Há quatro anos, disse: «O grande foco é aproximar as universidades das empresas de modo mais efectivo, por um tempo que permite cimentar essas relações». Este relacionamento entre o mundo académico e o empresarial está melhor?

Acredito que está muito melhor, porque existe a percepção e o entendimento de que essa relação e aproximação é, mais do que benéfica, é fundamental para a sobrevivência dessas instituições. Essa percepção existe. Agora, é um caminho extraordinariamente difícil, temos consciência disso, e por isso falarmos no relacionamento a longo prazo. Essa relação pressupõe, desde logo, uma dimensão de confiança, que se vai construindo, não nasce de um projecto, de um protocolo assinado. Precisa, às vezes, de anos.

Há um aspecto que é preciso reconhecer: se as empresas e as universidades tiverem o mesmo propósito, têm missões diferentes. Se o propósito for contribuir para a evolução da sociedade – e acho que todos nos revemos neste propósito -, a missão das universidades é formar pessoas, criar conhecimento, enquanto às empresas lhes cabe organizar e fazer a melhor utilização possível desse conhecimento para transferi-los em benefícios tangíveis para o nosso dia-a-dia. Missões diferentes que muitas vezes não são conciliáveis de forma natural. Tem dimensões temporais diferentes, basta pensarmos que nas empresas queremos tudo para ontem mas que o conhecimento não se adquire em duas semanas. Estas contradições só podem ser ultrapassadas com confiança, daí a importância de projectos a longo prazo.

É por isso que a Bosch tem protocolos com várias universidades?

Temos vários projectos com várias universidades. Mais: temos um programa de vários projectos em sucessão. Ou seja, tentamos começar um projecto antes de terminar o anterior, exactamente para que as pessoas possam partilhar, transitar, transferir as relações, mais que o conhecimento, porque o conhecimento pode ficar documentado, mas é importante transferir as relações de um projecto para outro, para que se sejam sucessivamente alimentados.

Como é que a inovação da Bosch em Portugal é vista pelas restantes casas europeias? Ficamos bem na fotografia?

Ficamos e a primeira reacção é de surpresa. Não havia ideia – creio que está felizmente mais generalizada – do potencial e da qualidade da formação dos nossos engenheiros, dos nossos técnicos, o seu profissionalismo e rigor. É desde logo o primeiro efeito surpresa que obriga a redefinir a expectativa e o relacionamento. Depois, porque a nossa cultura, esta vontade de descobrir, é muito dada à inovação. A paixão de nos relacionarmos, de ter alguma vontade pelo emocional, dá-nos vantagem. Um comentário que nos fazem sempre é: «As pessoas parecem apaixonadas pelo que fazem». Não sei se seremos mais apaixonados que os nossos colegas alemães ou franceses, mas é verdade que a nossa cultura transmite-o de uma forma muito especial – isso surpreende e conquista os nossos parceiros.

 

 

 

1 comentário

Os comentários estão encerrados.