Entrevista

«A pandemia provou que, se quebrarmos a cadeia global de abastecimento, há graves problemas»

Entrevista a Willem Jonker, CEO da EIT Digital.

A Europa luta para se manter na alta esfera da inovação e do desenvolvimento. Uma luta que encontra alguns entraves no domínio dos países, enquanto estados-membros isolados, e não como uma verdadeira união europeia, segundo Willem Jonker, CEO da EIT Digital.

Como vê, hoje, o panorama digital europeu e até que ponto todo o contexto espoletado pela COVID-19 veio alterar essa “paisagem”?

Acredito que a COVID-19 veio, efectivamente, alterar o panorama no que ao uso de tecnologia digital diz respeito. Mas não acredito que tenha mudado o panorama da digitalização na Europa. Ou, pelo menos, não vi grandes players a emergirem neste período. Aliás, se olharmos para os últimos dez anos, o maior crescimento registado foi no mercado dos chips, nomeadamente com a ASML. No mercado europeu, a SAP continua a ser a empresa mais forte e assistimos a uma consolidação no mercado dos equipamentos de comunicação com a Nokia a fundir-se com a Alcatel-Lucent. Ou seja, neste momento temos dois players europeus: Ericsson e Nokia. No fundo, não vimos grandes alterações, não houve empresas que tenham ganhado particular relevo.

E no mercado das aplicações digitais?

É verdade que temos vindo a percepcionar um crescimento nas empresas que suportam aplicações digitais, nomeadamente as do sector financeiro, sobretudo se compararmos com a realidade deste mercado há dez anos. Aqui, já vemos marcas como a N26 a surgirem e a ganharem projecção e maturidade. Mas, sobretudo, creio que a COVID-19 foi um abrir de olhos para a cadeia de abastecimento global.

A questão dos chips ou melhor, da sua escassez, foi um claro exemplo. A Europa produz chips, como a NXP: apesar de os investidores não serem europeus, tem aqui a sua sede, sendo líder no sector automóvel. Mas, se olharmos para o abastecimento mais geral deste sector, vem de fora da Europa e mesmo dos EUA. A guerra na Ucrânia também teve algum impacto no panorama europeu da digitalização, assim como os ataques de cibersegurança que vieram provocar uma apetência por soluções mais robustas. Por outro lado, temos a regulação europeia, com o Digital Services Act (DSA) e o Digital Markets Act (DMA) a ganharem particular relevo, assim como todas as questões ligadas à ética da inteligência artificial. Ou seja, foram dados importantes passos.

Na área económica e de investimento, houve alterações?

Enquanto na área da política fizemos grandes avanços, é verdade que na matéria económica ainda somos dominados por players tecnológicos globais não europeus.

A Europa tem uma mentalidade global em termos de inovação?

É complicado dizer. No que diz respeito às fronteiras tecnológicas, a Europa tem de fazer tudo para se proteger, mas corremos o risco de fechar algumas janelas” – o Brexit teve esse efeito. Ou seja, não podemos permitir que o Reino Unido se junte ao programa Horizon Europe, o que não ajuda e leva a posturas defensivas.

As mudanças geopolíticas fazem com que tenhamos mais cuidado com as relações com outras partes do mundo. É verdade que, com a anterior administração dos Estados Unidos, a colaboração com o outro lado do Atlântico não era muito famosa, ao mesmo tempo que as tensões geopolíticas com a Ásia também tiveram os seus impactos na colaboração entre investigação, desenvolvimento e inovação. Digamos que a mente de inovação aberta esteve sob pressão, devido a todas estas forças.

A Europa trabalha por “silos” ou já se vê alguma união neste sector? Há tempos disse, numa entrevista, que «inovação sem colaboração não exist

Bem, se olharmos para o orçamento de inovação, verificamos que o Horizon Europe tem um montante significativo. Mas, ainda assim, os países, por si, investem mais. Ou seja, as nações estão a financiar os sistemas de inovação e de educação num montante bastante superior ao europeu, o que resulta no facto de muitas agendas serem nacionalmente dominadas. É verdade que, em algumas áreas, há colaboração nacional em pequenos grupos; noutras, temos isto a um nível superior, como o Programa Digital Europeu ou iniciativas de alta performance em computação ou inteligência artificial… mas vemos um enorme esforço das nações de forma individual em ganharem vantagem competitiva e a competirem com outros países europeus. Contudo, num nível acima, onde é obrigatória a colaboração para nos mantermos no topo, como a indústria aeroespacial, vemos coordenação.

O Instituto Europeu da Inovação e Tecnologia (EIT) tem uma  nova iniciativa que ambiciona dotar um milhão de pessoas com competências na área de Deep Tech até 2025. O que esperam conseguir?

Esta é uma iniciativa de que a Europa precisa imenso, apesar de estar extremamente bem posicionada. A denominada deep tech é uma tecnologia baseada em pesquisas científicas, onde os europeus são muito bons – logo, deve ser uma área onde estaremos particularmente à vontade. Temos muito talento deep tech ao nosso redor, mas admito que falta uma letra nesta iniciativa: o e de empreendedorismo. Ou seja, precisamos de pessoas que levem os resultados alcançados para o mercado. Não adianta ter muito talento se, depois, não se converter na economia deep tech de que precisamos. Por isso, penso que a letra e devia estar contemplada na denominação desta iniciativaestamos a falar de empreendedorismo deep tech; talento já temos.

A Europa está a ficar para trás, no digital?

Infelizmente, o gap é cada vez maior, mas também o é porque o digital está por todo o lado. Vemos sectores a encetarem grandes transformações, especialmente na indústria automóvel, com os veículos a serem eléctricos ou seja, a serem autênticos computadores sobre rodas e não motores de combustão com algum software. Tudo isto faz com que a Europa precise de talento digital.

Como vê o futuro da competitividade europeia, nomeadamente face aos Estados Unidos e Ásia?

A pandemia provou que, se quebrarmos a cadeia global de abastecimento, há graves problemas, como o problema na distribuição de chips. A tensão geopolítica veio mostrar que é preciso ter alternativas, não podemos estar dependentes, apenas, de um fornecedor. A consciencialização e o alerta está aí mas as soluções, não… se olharmos para o panorama de há dez anos, a paisagem económica não era muito diferente. Como já referi, não surgiram grandes players na Europa, só mesmo a ASML, não estou a ver outra. Precisávamos de ter cinco ou dez desses exemplos, o que não aconteceu.

Acha que a Europa não vai conseguir aproveitar o alerta deixado pela COVID-19?

Por um lado, estamos a ter iniciativas ao nível da regulação, legislação e iniciativas; por outro, temos de perceber que a Europa ainda tem muita da sua força sustentada nos estados-membros individuais que, por si, também não têm poder suficiente para enfrentarem os EUA ou a Ásia. Por isso, mantemos esta relativa e frágil posição. Hoje, a Europa luta ainda com outras questões, como a energética ou a organização da Defesa, isto além dos assuntos relacionados com as mudanças climáticas. Ou seja, actualmente, todos estes pertinentes assuntos sobrepõem-se à agenda digital, ou desviam as atenções, apesar de o digital integrar todas estas matérias. É um desafio.