Entrevista

«O que define não haver incidentes graves são as pessoas»

Entrevista a Manuel Bento, director da Euronext Technologies.

A Euronext, um grupo de mercados bolsistas que actua na Europa e Estados Unidos, tem no Porto o seu epicentro tecnológico.

Como define a Euronext Technologies?

É uma empresa de tecnologia, já que 95% dos nossos recursos, das nossas pessoas, são licenciadas em tecnologia, engenharia ou sistemas de informação. É uma empresa detida a 100% pela Euronext, um grupo de mercados bolsistas que actua na Europa e Estados Unidos.

Mas a actividade do braço tecnológico do grupo é feita a partir do Porto, certo? O que fazem desde o  Euronext Tech Center Porto?

Primeiro, suportamos os negócios internos da Euronext. Depois, vendemos serviços a clientes externos ao grupo, clientes obviamente internacionais já que em Portugal apenas há uma Bolsa e nós só actuamos em sistemas de mercados capitais, de negociação pura.

De que países são esses clientes?

São Bolsas do Norte da Europa ou do Médio Oriente, por exemplo. Fazemos também o que chamamos de MTF – Multilateral Trading Facilities. Com a entrada da regulação que permitiu a liberalização destes mercados, apareceram outras empresas que não as bolsas tradicionais a negociarem os mesmos tipos de instrumentos financeiros.

Posso comparar isso ao movimento das Fintech terem entrado no mundo da banca tradicional?

Desde 2007 que a banca de investimento passou a poder transaccionar e ter os seus próprios mercados. Até essa altura, quem conhecia todos estes sistemas de trading eram as bolsas tradicionais. Abriu-se então uma porta de oportunidade e negócio. Porque se, por um lado, deixamos de ser os incumbentes – quem faz todas as transacções – por outro passamos a poder vender serviços a essas “novas” empresas. Temos três grandes clientes do Reino Unido, por exemplo, para os quais fazemos os sistemas de MTF, de transacções bolsistas.

Criaram então uma nova linha de negócio?

Na parte de tecnologia, sim. Ou seja, desenvolvemos tecnologia para o grupo e depois adaptamo-la para outros mercados. Temos uma equipa que trabalha por turnos, 24 horas por dia, sete dias por semana, que trata da abertura dos mercados e que pilotam todos esses sistemas bolsistas.

Falamos em pessoas ligadas à área tecnológica e não financeira?

São todos da área tecnológica. Hoje, os sistemas bolsistas são todos electrónicos, aquela visão romântica do cinema de pessoas na Bolsa de Wall Street a negociarem de telefone na mão foi nos anos 80. Hoje, temos sistemas de baixa latência e de elevado desempenho que fazem com que a capacidade de resposta da Euronext seja medida em micro-segundos. Com a entrada de mercados paralelos, quem executa uma transacção tenta optar pelos sistemas que são mais rápido e apresentam mais fiabilidade.Daí a tendência agora ser termos tão elevadas performances.

Porque escolheram o Porto para as vossas operações?

Quando estávamos em Belfast – eu ainda não fazia parte da organização, fui recrutado para o Porto – não tínhamos propriamente nenhuma operação lá, nenhum negócio. Belfast nasceu de quando tínhamos operações conjuntas com a New York Stock Exchange e eles queriam estar presentes num país anglo-saxónico. Quando a Euronext ficou independente, em 2015, decidiu escolher outra localização na qual o grupo tivesse negócios. Paris estava fora de questão porque era a sede e não fazia sentido concentrar ali mais operações, sobretudo porque queremos ter escala europeia. Tínhamos outras localizações, como Amsterdão ou Bruxelas, mas que financeiramente não se mostraram tão benéficas…

Estamos a falar da mão-de-obra em Portugal ter um custo mais razoável, pelo facto de o preço do metro quadrado ser suportável e termos qualidade?

Sobretudo por termos qualidade. Claro que para o ‘business case’ original o custo foi interessante, mas se não tivéssemos qualidade…

Estão há dois anos no Porto. Começaram com 80 colaboradores, hoje são mais de 150. Em toda a indústria tecnológica, as notícias que nos vão chegando é que não há recursos para contratar…

Isto prova a tal qualidade que falávamos. Se não a tivéssemos, ficávamos com aqueles 80 recursos e com a mesma operação do que quando iniciámos. Estamos a falar de áreas altamente especializadas nas quais se há erros, os sistemas param. Quando há algum incidente, os mercados param logo. Havia a possibilidade de irmos para o Porto ou Lisboa. Optou-se pelo Porto pelo facto de já termos aqui uma operação, a Interbolsa, e resolvemos juntar as equipas. A proximidade que havia com as faculdades também foi importante. Para além do Porto, temos ligação a Braga, Aveiro e Coimbra, assim como a diversos politécnicos.

Estamos a falar de incidentes graves.

Obviamente. Há outros que podem ter algum impacto interno mas sem qualquer repercussão no cliente. Ou seja, a ideia é que não pode haver incidentes graves. E não tenha qualquer dúvida de que o que define não haver estes incidentes graves são as pessoas. É a qualidade das pessoas.

Como cativam os recursos? A nova geração que está agora a entrar no mercado de trabalho é mais difícil de cativar, muitas vezes não é só o ordenado que conta.

É um desafio. Mas há vantagens quando integram a Euronext, até porque começam desde logo a trabalhar com pessoas de seis nacionalidades diferentes, que estão em geografias distintas. E isso é altamente diferenciador face a outras empresas. Temos uma exposição ao internacional muito grande. Numa base diária trabalham com França, Holanda, Irlanda, Bruxelas e com o Reino Unido.

O facto de os portugueses serem ágeis nos idiomas ajudou?

Claro que ajudou. Aliás, foi outras das decisões de vir para Portugal. O nosso nível de inglês é bom, que é a língua que usamos aqui. Com presença em tantos países só podia ter sido desta forma. Claro que recrutar não está a ser tão fácil como foi no início, há mais empresas no mercado. Até agora, conseguimos substituir as pessoas que saíram. Até porque, tal como nós recrutamos pessoas para virem trabalhar para aqui, é natural que outros façam igual. Temos sabido lidar com isto, nomeadamente através de processos internos para garantir que não temos pessoas que só saibam de determinado tema e que se forem embora percamos esse conhecimento. Tentamos partilhar o conhecimento para que quando alguém saia o serviço seja mantido sem qualquer problema.

O mercado onde actua a Euronext é tão específico que é tudo desenvolvido por vocês?

O número de bolsas mundiais é limitado, por isso comercialmente não é interessante para ser desenvolvido por terceiros. Existe algum software no mercado, mas tipicamente por empresas como a nossa, que também já presta este serviço a outros. Temos um sistema proprietário, desenvolvido para nós, e revendemos para terceiros, de forma personalizada. Só assim se torna interessante.

Quanto representará essa unidade de prestação de serviços a terceiros?

Digamos que temos boas receitas a esse nível. Neste momento não divulgamos números mas ainda é uma boa percentagem. Apesar de obviamente não ser o maior negócio, são valores que não queremos perder ao fim do ano. Neste momento, como temos uma nova plataforma, estamos a fazer um ‘push’ comercial para a sua aceitação no mercado. Esta unidade vai, por isso, continuar.

Qual foi o maior desafio deste par de anos?

O primeiro grande desafio foi o recrutamento das pessoas. Em cerca de três meses recrutar e formar 80 pessoas não é fácil. Tínhamos de fechar Belfast e era mesmo preciso estar operacional. Não deu para ir fazendo com calma. Era para aprender e fazer. Esse período foi interessante, desafiante, guardo muito boas memórias dessa altura. Além do mais, para além de estarmos a recrutar, estávamos a fazer obras no edifício. A seguir veio a consolidação do conhecimento e garantir que estávamos preparados para os desafios do mercado, da tal rotatividade de pessoas que poderiam sair. Fizemos esse trabalho, começamos a participar em projectos estruturantes do grupo, estando neste momento integrados em todos os projectos core da Euronext. Hoje, representamos 45% das TI do grupo.

Os resultados foram então positivos.

Foram acima do expectado, até. O grupo não estava à espera de que esta operação se tornasse tão relevante num tão curto espaço de tempo. E uma vez mais, isso foi conseguido graças à qualidade da equipa. Depois, entramos num período de expansão. De termos mais pessoas, formá-las e garantir que a rotatividade não tenha impacto. Este movimento foi acompanhado pela própria expansão da Euronext, que adquiriu a Bolsa de Dublin. Neste momento, tenho equipas em Dublin e Paris que já reportam ao Porto. Todas as funções que aqui temos são globais.

E agora?

Neste momento, estamos a formar novas equipas globais e temos a nova plataforma em produção que as equipas estão a operar. Hoje, temos equipas de operações 24 horas, sete dias por semana; temos equipas de engenharia, que tratam dos servidores, dos sistemas operativos, bases de dados, redes; temos equipas de software, que personalizam o software para terceiros; temos ainda equipas de devops, de ferramentas internas e de cibersegurança. Aliás, 80% das pessoas que tratam da cibersegurança do grupo estão aqui no Porto. Temos ainda as equipas globais de data management e data governance. Tudo isto acabou por amadurecer o que fazemos. Creio que todos os que participaram no projecto se orgulham da operação que montámos.