Reportagem

Portugal está atrasado na implementação da acessibilidade digital

As empresas e as entidades públicas nacionais ainda têm um longo caminho a percorrer na implementação da Lei Europeia da Acessibilidade, que entrou em vigor a 28 de Junho de 2025. Entre os principais desafios sentidos pelas organizações estão o desconhecimento, assim como factores culturais e organizacionais. Mas esta é também uma oportunidade para inovar.

Freepik

A Lei Europeia da Acessibilidade (Directiva 2019/882), que foi transposta para a legislação portuguesa através do Decreto-Lei n.º 82/2022, estabelece que produtos e serviços digitais sejam acessíveis a pessoas com incapacidades físicas e/ou cognitivas, temporárias ou permanentes, havendo coimas para quem não cumprir. A União Europeia estima que esta legislação possa afectar mais de 87 milhões de cidadãos europeus.

Esta Lei distingue três categorias: equipamentos tecnológicos (equipamentos informáticos e sistemas operativos; smartphones e tablets; equipamentos de televisão que incluam serviços digitais); serviços de utilidade pública (transportes públicos; serviços bancários; caixas multibanco e terminais de pagamento; equipamentos de venda de bilhetes; e equipamentos de registo automático; livros electrónicos ou digitais; informações sobre serviços de transporte; atendimento de chamadas de emergência) e serviços digitais (comércio electrónico; serviços multimédia e audiovisuais; serviços de comunicação electrónica, incluindo aplicações móveis e bancárias e serviços integrados em dispositivos móveis). Mas há excepções, como por exemplo, as microempresas, com menos de dez empregados e um volume de negócios anual inferior a dois milhões de euros, que ficam excluídas do âmbito de aplicação da directiva.

Sector público vs privado
Carlos Neves, especialista em acessibilidade e responsável de UX (experiência do utilizador) na Xpand IT, explica que o País «ainda tem um caminho significativo a percorrer no que diz respeito à acessibilidade digital tanto no sector público como no privado». Da mesma ideia partilha Andreia Duarte Costa, accessibility expert da Tangível: «Portugal tem dado passos na área da acessibilidade, mas ainda há muito por fazer, tanto no sector público como no privado». Esta responsável faz, ainda, uma comparação com um país nórdico: «Estamos quatro vezes menos acessíveis que a Suécia».

Na administração pública, «apesar da existência de algumas boas práticas, muitos organismos continuam sem cumprir os requisitos definidos pelo Decreto-Lei n.º 83/2018», a legislação anterior à Lei Europeia da Acessibilidade, refere Carlos Neves. Por outro lado, este responsável destaca que no sector privado, a situação é «ainda mais desafiante», já que «muitas empresas com presença digital desconhecem completamente o tema da acessibilidade, os seus benefícios e o impacto positivo que pode ter no seu negócio». Andreia Duarte Costa realça que, no «sector público, já se notam mais progressos» e que «a AMA [Agência para a Modernização Administrativa] tem tido um papel importante a promover e monitorizar a acessibilidade nos serviços digitais do Estado» tendo criado os «Selos de Acessibilidade e Usabilidade» existentes em diversos sites e serviços. Já no sector privado, a acessibilidade digital «ainda não é uma prioridade para muitas empresas». Ambos os especialistas falam em «falta de sensibilização, conhecimento e de integração estratégica da acessibilidade nas políticas digitais das organizações» como os principais desafios.

A responsável da Tangível acredita mesmo que esta temática «continua a ser vista como um custo e uma obrigação e não como um investimento», algo que a entrada em vigor da Lei Europeia da Acessibilidade «está a mudar». Já Carlos Neves destaca ainda que a acessibilidade «deveria ser vista como uma responsabilidade social e uma oportunidade para melhorar a experiência de todos os utilizadores, sem excepção».

Carlos Neves © Xpand IT

Diferentes níveis de acessibilidade
O responsável explica que existem três níveis WCAG (Web Content Accessibility Guidelines). O nível A, «que inclui requisitos básicos como garantir texto alternativo em imagens, tornar conteúdos legíveis por leitores de ecrã ou assegurar que os utilizadores conseguem aceder aos elementos principais da página»; o AA, que é o padrão recomendado e exigido pela legislação europeia que «adiciona critérios como contraste de cores adequado, navegação completa através do teclado, foco visível e etiquetas claras em formulários»; e o AAA, o mais exigente e que se aplica «sobretudo a contextos que pretendem oferecer uma experiência altamente personalizada e inclusiva», refere Carlos Neves.

Segundo o Observatório Português da Acessibilidade Web, que analisou até ao momento 1186 entidades (a quase totalidade públicas), a pontuação média nacional de acessibilidade é de 7,4 (escala 0 a 10). Os directórios das ‘Organizações Não Governamentais’, ‘Área Governativa do Ambiente e Ação Climática’, ‘Área Governativa da Agricultura e Alimentação’ e o das ‘Juntas de Freguesia’ são os com pontuação mais baixa, não chegando a uma média de 6 e não ultrapassando o nível A. Já no sector privado, os cinco sites analisados conseguiram uma média de 9,7 sendo que três deles são do Grupo Jerónimo Martins, a «primeira entidade privada no País a conquistar o Selo de Maturidade Digital – Acessibilidade», atribuído pela Imprensa Nacional Casa da Moeda e certificado pela Associação Portuguesa de Certificação (APCER).

Avaliar e corrigir
O especialista de UX da XpandIT considera que o primeiro passo é «fazer uma auditoria de acessibilidade aos canais digitais da empresa» para «identificar barreiras» e definir um roadmap de correcções, que pode incluir alterações técnicas, de design, de conteúdos ou na estrutura de navegação». Andreia Duarte Costa também é desta opinião e acrescenta que é preciso «rever processos, formar as equipas, trabalhar a cultura da organização e incluir a acessibilidade no início, ainda antes da fase de desenho dos produtos». Calor Neves alerta ainda para necessidade de «envolver equipas multidisciplinares» que incluam «designers UX/UI, programadores, editores de conteúdo, equipas de marketing e, idealmente, utilizadores com limitações reais, que ajudem a validar a experiência».

E se o «desconhecimento» é um desafio, como salienta a accessibility expert, a «distância da realidade das pessoas com deficiência é outro dos problemas», já que «muitos profissionais nunca usaram ou sequer sabem o que é um leitor de ecrã [uma tecnologia que permite as pessoas cegas ou com baixa visão navegar em sites e apps, lendo em voz alta os textos, títulos, botões, formulários e descrevendo as imagens da página]» ou «sabem como pessoas cegas, com baixa visão, surdas ou com paralisia cerebral usam os produtos digitais».

Andreia Costa © Tangível

Uma oportunidade para inovar
Ambos os especialistas acreditam que a Lei Europeia da Acessibilidade poderá também ser uma oportunidade de inovação e diferenciação competitiva. Carlos Neves afirma que, ao «investirem em acessibilidade, as empresas não só cumprem a legislação, mas também melhoram os seus produtos: tornam-nos mais valiosos, usáveis e alinhados com as expectativas de um público cada vez mais atento à inclusão». Além disso, isto «reforça o compromisso das organizações com os princípios de ESG» e é «uma alavanca para a inovação sustentável». Por seu lado, Andreia Duarte Costa diz que é uma «oportunidade de negócio e de inovar com o foco nas pessoas» já que, de acordo com a experiência da Tangível, que realizou projectos nesta área com AMA, o Instituto de Informática, o Continente, a Cofidis, a a a Wells, EDP e Galp, o «principal factor de escolha de uma plataforma digital, para uma pessoa cega, é ser a que tem menos barreiras de acessibilidade, não o preço». Em jeito de conclusão, a especialista sublinha ainda que «fazer produtos acessíveis obriga os profissionais a serem mais criativos, rigorosos e empáticos».

Deixe um comentário