Entrevista

«É difícil abrir novos mercados e fechar contratos [internacionais] sem viagens de avião»

Entrevista a Jorge Carvalho, fundador e presidente do conselho de administração da SoftFinança.

A SoftFinança é uma empresa portuguesa que opera na área de sistemas de informação e que comemora este ano o 31.º aniversário. Jorge Carvalho, fundador e presidente do conselho de administração, explicou como tem sido lidar com a pandemia e fala sobre a dificuldade acrescida que trouxe ao processo de internacionalização da tecnológica.

Como foram estes 31 anos e como é que SoftFinança se apresenta hoje ao mercado?

Bem, 31 anos são uma vida. A SoftFinança começou como uma aposta no mercado financeiro, numa altura em que ainda não existiam fintechs. Portanto, fomos das muito poucas empresas que, em Portugal, se dedicavam exclusivamente ao mercado financeiro.

Na maior parte do percurso [nos primeiros vinte e tal anos], fomos fundamentalmente uma empresa de projectos em que fizemos banca de A a Z. Fizemos também projectos para o sector dos seguros, sendo que esse caminho fez com que fossemos construindo plataformas que, mais tarde, se transformaram em produtos que se adaptam a outras actividades. Na verdade, as nossas áreas mais importantes são as do self-service, onde somos referência no mercado, e as de pagamentos móveis, wallets, cartões e de monitorização e controlo.

O que fazemos é aquilo que hoje é comummente designado por ‘transformação digital’. É o nome para muito do que foi feito ao longo destes 31 anos. Actualmente, a SoftFinança aparece como uma empresa onde a sua especialidade é apoiar a transformação digital das empresas com o intuito de tornar a vida mais fácil ao cidadão, naquele que é o seu relacionamento com o mundo, em particular em relação aos pagamentos. Os pagamentos estão no centro daquilo que é a nossa actividade.

Quais são os vossos clientes-tipo?

Desde a nossa génese que temos clientes como grandes bancos e seguradoras – é este o ADN. Normalmente, não temos PME como cliente e esse nunca foi o nosso foco. Não que seja algo que não queiramos, mas trabalharmos com as grandes empresas está relacionado com a história, o posicionamento e os produtos em que investimos. Hoje, os produtos que temos podem também ser aplicados a PME, em particular na área dos pagamentos.

Quanto aos sectores, sempre trabalhámos para o financeiro, mas já diversificámos e temos clientes na área do grande retalho (como é caso da Sonae Financial Services, empresa com a qual temos o caso de estudo do cartão Universo), saúde e administração pública.

Como foram os últimos dois anos e como “navegou” a SoftFinança na pandemia?

Estes dois últimos anos foram atípicos para todos. A SoftFinança, sendo uma tecnologia, esteve desde o primeiro dia preparada para lidar com esta situação de uma forma muito mais fácil que algumas das outras actividades. Tivemos dois anos bons em termos de negócio, de receitas e crescemos. Fizemos parte do estrato de empresas para as quais a pandemia trouxe dificuldades, mas que não se reflectiram particularmente no desempenho.

Evidentemente que esta situação fez com que nos tivéssemos de adaptar a esta realidade, desde logo com a questão do teletrabalho. As equipas passaram, quase na totalidade, a trabalhar de forma remota e começámos a ter reuniões à distância, mas a situação não criou problemas de maior.

A SoftFinança está a funcionar em regime de trabalho híbrido. Como têm sido as dinâmicas de trabalho?

A verdade é que as relações de trabalho estão a ser alteradas, mas nada substitui o contacto pessoal. A forma com que se interage passou a ser diferente e, em determinados tipos de trabalho, em que a discussão e troca de ideias é fundamental, isto corta, em grande medida, a forma de trabalhar – este aspecto é negativo. Perde-se muito aquilo que é a relação da equipa, a agilidade e a forma como as coisas se fazem. São novos tempos e temos de nos continuar a adaptar.

Vêm o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) como uma oportunidade de negócio para o País e para empresas tecnológicas como a SoftFinança?

O PRR não tem como não ser uma oportunidade única, que dificilmente se repetirá nas nossas vidas. O volume de dinheiro que vem para o País é de tal forma grande, que não pode deixar de ser uma oportunidade. Tenho a esperança que se dê o melhor destino possível a esses fundos, que são críticos para as gerações vindouras. Do meu ponto de vista, o que está em causa não é o dia de amanhã: é o futuro dos nossos filhos e netos. Aquilo que se fizer hoje, ditará o futuro das próximas gerações.

No que concerne à SoftFinança, que faz parte de um grupo de empresas ligadas à transformação digital, e sendo esse um dos pilares do PRR, acho que sim: vai ser uma oportunidade para nós. Não sei bem como ainda, mas sim.

Quais são os vossos planos de internacionalização?

Estes dois últimos anos foram altamente penalizadores em relação à internacionalização. Fizemos muito menos viagens de avião e, apesar de os contactos remotos serem fantásticos, a nossa experiência diz-nos que é difícil abrir novos mercados e fechar contratos sem viagens de avião, só com Zoom, Teams e Skype.

Em virtude da pandemia, mudaram um pouco as condicionantes para fazer negócio, mas não mudou a necessidade de estarmos fisicamente presentes quando é necessário. Apesar de termos crescido e de termos reforçado a actividade localmente, continuamos com planos de internacionalização, que é o que faz sentido para quem é português e tem as limitações da dimensão do mercado. Temos operação no Senegal com um parceiro e, apesar da pandemia, fizemos um novo cliente na República Dominicana, mas tivemos de viajar de avião. O banco do estado, que é o maior desse país do Caribe, é nosso cliente, com grande satisfação. Isto estimula-nos bastante do ponto de vista de prosseguir com estas actividades na América Latina, onde há similitude de soluções e problemas – logo, de oportunidades de negócio. O que fizemos ainda é pouco e podemos fazer muito mais.

Outra área de expansão tem a ver com a África Francófona. Temos uma presença no Senegal, que acaba por ser uma referência naquela parte do continente. São zonas onde temos feito trabalho, mas teremos de fazer as tais viagens de avião para conseguir fechar cara-a-cara os contratos e concretizar as oportunidades que temos, que são bastantes. África é um continente de oportunidades e é por aí que passa a nossa política de internacionalização.

Qual é a vossa aposta e estratégia para os próximos anos?

A SoftFinança teve quase sempre uma posição entre o cliente final a instituição, isto é, somos especialistas nos canais de distribuição e relacionamento. Isto é particularmente importante quando estamos a falar de transformação digital. Devemos continuar nessa linha onde temos uma fortíssima especialização, provas dadas, clientes: vamos apostar em melhorar este panorama e no fine-tuning destas soluções. Hoje, quando falamos deste tipo de relacionamento, estão em cima da mesa outro tipo de tecnologias que não estavam há trinta anos, como a inteligência artificial ou o deep learning, por exemplo. Portanto, tudo isto são tecnologias que olhamos do ponto de vista da inclusão na nossa oferta. Continuamos a vender o mesmo, mas agora com algumas coisas que se podem fazer por força dessa “magia”. Essas tecnologias são integradas de forma discreta nas soluções e, por isso, não é tão evidente, mas queremos continuar a oferecer plataformas e soluções cada vez mais inteligentes.

Que previsões de crescimento têm para 2021 e 2022?

Este ano vamos crescer pouco, na ordem de um único dígito. Não era o que estava previsto, mas não conseguimos fazer melhor. Temos um pipeline de oportunidades muito generoso e de dimensão, mas sem conseguirmos as reuniões presenciais é mais difícil. Se tivéssemos conseguido só um dos negócios, o crescimento teria sido diferente. A verdade é esta.

Tivemos de nos desdobrar em esforços cá dentro para continuarmos bem e a crescer. Crescemos menos do que gostaríamos e espero que 2022 nos traga essa oportunidade. Tenho a convicção de que o próximo ano vai ser generoso com a SoftFinança.

Como vêem a falta de talento tecnológico em Portugal e a vinda de tantas outras empresas para o País que abrem centros tecnológicos?

Vemos com apreensão. É um problema grave do País e isto aplica-se a todas as empresas. A fuga de talentos também é evidente e tem de ser resolvida a fundo: passa por uma acção política. É por isso que o PRR é tão importante – não basta vir o dinheiro, é preciso que o dinheiro retenha o talento que cá existe.

Qual é a vossa estratégia para atrair e reter talentos?

Não é fácil. Estamos atentos aos talentos das faculdades, mas não estamos lá sozinhos e quando temos grandes tecnológicas a desafiar os estudantes, é complicado competir. Também há talentos lá fora e temos de ser capazes de os encontrar noutros lados. Hoje, temos vários colaboradores que não são portugueses.

Temos de ser realistas e usar as armas que temos. O que temos, de facto, são equipas muito dinâmicas e projectos muito interessantes. O que podem fazer aqui é muito diferente do que pode fazer numa grande tecnológica, porque aqui damos responsabilidade, autonomia, capacidade de experimentação e interacção, o que não acontece noutras organizações. Assim, oferecemos uma capacidade de crescimento maior e mais rápida: é esta a realidade.

A SoftFinança actua numa área muito dinâmica e de grande transformação. Como vêem a concorrência das startups e fintechs. Acham que é uma ameaça?

Começamos a trabalhar quando o conceito de fintech nem existia e, quando começou a aparecer, ficámos a saber que, afinal, havia muitíssimas empresas a saber do mercado financeiro. O mundo mudou – temos de nos adaptar a essa mudança e realidade. Somos uma startup há 31 anos, é o espírito que temos, de continuarmos a ser inovadores, irreverentes e resilientes. É isso que nos caracteriza. São todos muito bem-vindos a este mercado e há espaço para todos. Não me parece que corte a oportunidade para outras empresas, é positivo e só estimula a nossa capacidade e engenho.