Entrevista

«Até 2025 queremos preparar-nos para uma internacionalização consistente»

Entrevista a João Miguel Domingos, CEO da MedicineOne.

João Miguel Domingos, fundador e CEO da MedicineOne

É de Coimbra, abriu um escritório em Lisboa, está presente em alguns mercados dos PALOP, mas quer mais. A MedicineOne, empresa tecnológica de origem portuguesa dedicada ao desenvolvimento de software para o mercado da saúde, quer entrar nos «mercados maduros» da Europa do Norte. Até 2025, querem ser reconhecidos pelos analistas internacionais como estando entre os melhores do mundo, disse a businessIT João Miguel Domingos, CEO.

Como apresenta a MedicineOne  ao mercado?

Somos uma empresa tecnológica, portuguesa, totalmente dedicada à área da saúde. Desenvolvemos uma solução de software que suporta todos os processos da prestação de cuidados na jornada do doente. Ou seja, dá apoio a tudo o que envolva a prestação de cuidados de saúde por enfermeiros, médicos, farmacêuticos ou por outro tipo de terapeutas.

Paralelamente, existem áreas não clínicas, como a administrativa, a financeira ou a logística, essenciais para que um hospital ou clínica funcione e às quais a solução dá igualmente apoio. Ou seja, esta é uma solução integrada onde todos os profissionais que desempenham funções numa unidade de saúde – seja um pequeno consultório, clínica intermédia, um grande hospital ou até um grupo de saúde com várias unidades geograficamente dispersas – vejam o seu trabalho apoiado. É isto que entregamos ao mercado.

É fundador da empresa. O que esteve na base da criação deste projecto? Veio da medicina para a tecnologia ou trouxe a tecnologia para a medicina?

Sou uma pessoa da tecnologia. Em 1988, um amigo médico pediu-me para o ajudar a construir um ficheiro clínico para ter toda a informação registada dos seus doentes. Era uma coisa que não existia, até porque foi apenas nesta altura que os computadores começaram a estar acessíveis às pessoas. Isto viria a ser a nossa primeira solução comercial, apesar de, na altura, eu não ter qualquer intenção em tornar o projecto empresarial. Pelo contrário, era apenas um favor a um amigo. Mas quando o trabalho ficou pronto e ele começou a usá-lo e a mostrá-lo aos colegas, eles também o quiseram usar. Isso fez-me repensar os planos originais e criar a MedicineOne, em 1990.

A solução foi para o mercado nessa altura?

Sim, em Abril de 1990 lançámos o produto para o mercado. Nascemos nos cuidados primários, um dos grandes sectores da prestação de cuidados, havendo depois os cuidados hospitalares, continuados ou saúde ocupacional. Tudo isto são áreas complementares mas muito distintas, com necessidades muito diferentes umas das outras. Durante vinte anos especializámo-nos nos cuidados primários e depois avançamos para outras áreas, já que o objectivo é conseguir cobrir toda a jornada do doente.

Qual é o cliente-tipo? Estão presentes nas unidades do Estados ou mais fortes no privado?

Por questões históricas, lidamos com clientes de pequena dimensão, médicos privados com consultórios, compostos por dois ou três profissionais. Ao mesmo tempo, entrámos no Serviço Nacional de Saúde, na rede de cuidados primários, fazendo parte da reforma de 2005, 2006 e 2007. À medida que começamos a crescer, passamos a ter também clientes de média e grande dimensão, sendo que, hoje, alguns dos nossos principais clientes são o grupo Luz Saúde, Lusíadas Saúde ou CUF, mas também o Governo dos Açores que na área estatal tem toda a região de saúde informatizada com o nosso software na área dos cuidados primários. Ou seja, hoje temos alguns milhares de clientes de todos estes perfis.

Como surgiu a primeira aventura de internacionalização?

Foi em 2010, no Brasil. Nessa altura, o país sofreu uma transformação na sua rede de cuidados primários e inspirou-se no modelo português. Vieram a Portugal fazer algumas visitas, ver os casos de sucesso, e acabámos por ser contactados na sequência dessas mesmas visitas.

Ou seja, em vez de ter sido uma iniciativa da MedicineOne ir ao Brasil, foi o Brasil que veio a Portugal ter com a MedicineOne. Na altura, sabíamos que tínhamos de fazer ainda algumas coisas para estarmos prontos para irmos para o exterior. A internacionalização de uma solução como a nossa é diferente de áreas como o calçado, vestuário… além da localização linguística, temos de preparar conteúdos clínicos que apoiem a operação, precisamos de fazer uma adaptação funcional ao produto. De qualquer forma, aproveitámos a oportunidades e fomos para o Brasil. A seguir avançámos para os Países de Língua Oficial Portuguesa (Angola e Cabo Verde, onde temos um projecto com o Governo para todo o país) e, neste momento, estamos a preparar-nos para uma nova fase, muito mais madura.

Que países estão contemplados nesta nova fase?

Os mercados mais ricos e maduros do centro e norte da Europa, entrando em competição com os grandes players internacionais.

O mercado externo quanto é que representa para a MedicineOne?

Muito pouco, infelizmente ainda residual. O facto de estarmos presentes em países cuja saúde financeira é pior do que a portuguesa não facilita. Por exemplo, a desvalorização do Real no mercado brasileiro nos últimos anos tem sido fortíssima, o que quer dizer que temos todos os custos pagos em euros, mas as vendas realizadas em reais. Ou seja, à medida que o tempo foi passando o preço dos produtos foi descendo, não é fácil. Angola e Cabo Verde também não são conhecidos pela sua pujança económica e financeira, por isso ainda representa um pequeno valor no negócio. Precisamente por isso, precisamos de abordar outros mercados que sejam capazes de apreciar as áreas onde a MedicineOne se diferencia de todos os outros.

Acredita que os últimos vinte meses vieram potenciar junto da opinião pública a ideia de que a tecnologia, numa área tão sensível como a saúde, é a base de tudo? Desde a teleconsulta ao acesso a ficheiros, por exemplo?

Às vezes, é preciso passarmos por experiências difíceis para que finalmente se aprendam algumas lições. Ao longo da nossa história, isso já aconteceu mais do que uma vez. Há quinze anos, a maior parte das unidades de saúde não compreendiam o porquê de usar software para gerir a sua operação. Depois, os pagadores dos sistemas de saúde começaram a reduzir margens às operações dos hospitais e clínicas e todos compreenderam que tinham as casas desorganizadas, não sendo possível ser rentáveis e manter a actividade se o negócio não fosse suportado por software.

Na pandemia, em termos de desenvolvimento e negócio, foi extraordinário para nós. Começámos a trabalhar a partir de casa, mas conseguimos ter sempre a orquestra bem afinada e aumentámos a produtividade. Uma vez que estávamos a trabalhar há alguns anos nas plataformas, em regime de telecuidados, estávamos preparados para o que a pandemia exigiu. No mês de Março, aquando do primeiro confinamento, fizemos o lançamento do primeiro serviço de teleconsulta em Portugal, em parceria com a Medis, que, com base na nossa tecnologia, lançou um serviço 24/7 através do qual foram feitas até agora dezenas de milhares de consultas, que de outra forma não poderiam ter sido realizadas. Andávamos há cinco ou seis anos a pregar aos peixes para que os projectos estivessem preparados para isto, mas com a pandemia foram as pessoas que vieram ter connosco a pedirem ajuda. Acho que aprendemos todos o suficiente para perceber que o futuro será feito de grande digitalização e cuidados de proximidade que não impliquem uma presença física. Ficámos ‘contentes’ porque houve a oportunidade para transformar algumas coisas.

Os dados na saúde, assim como a sua segurança, são temas bastante sensíveis. Isso trava a digitalização ou o efeito pandemia também veio ajudar a ‘avançar’?

Os dados de saúde são, de facto, muito sensíveis e nunca ninguém pode dizer que está 100% a salvo. A maior parte das pessoas achava que os dados, para estarem em segurança, tinham de estar dentro de casa. Ou seja, havia a necessidade de investir em servidores e técnicos que garantissem a segurança e manutenção. Entretanto, começámos a ouvir muitas histórias de projectos, negócios e pessoas que foram atacados, os dados sequestrados, e que tiveram de pagar pequenas fortunas para os libertar. Dentro da nossa comunidade de utilizadores, tivemos clientes que, infelizmente, passaram por esta experiência. Por isso dizemos ao mercado que se querem estar seguros, têm de fazer o movimento para a cloud.

Os dados têm de estar residentes numa base de dados completamente encriptada, o que torna inútil qualquer roubo. Um sistema destes é claro e uma clínica ou um pequeno consultório não tem rentabilidade suficiente para investir neste tipo de base de dados. Por outro lado, os sistemas têm de estar permanentemente vigiados, de dia e noite com técnico especializados e isso só se consegue na cloud. Não num sistema caseiro. A pandemia veio ajudar as pessoas a compreenderem que a segurança e o custo de operação serão beneficiados se as infra-estruturas estiveram alojadas em cloud.

Quais as grandes linhas estratégicas para os próximos anos?

Estamos muito empenhados em marcar uma presença forte na área hospitalar, onde sabemos que podemos crescer bastante, migrando clientes de outras soluções concorrentes. Ao mesmo tempo – até porque o negócio em Portugal, pela sua dimensão geográfica, não pode aspirar a florescer a longo prazo – estamos a desenvolver um projecto, que vai terminar em 2025, no qual pretendemos atingir o patamar de sermos reconhecidos pelos analistas internacionais como estando entre os melhores do mundo. Uma solução capaz de ser usada em qualquer zona do planeta e que dê um apoio de inteligência clínica, que é o factor diferenciador da nossa solução. Até 2025 queremo-nos preparar para uma internacionalização consistente, sólida e bem-sucedida. Este é o nosso foco.