Entrevista

«Queremos resolver o desafio da falta de competências digitais antes de isso ser um problema»

Entrevista a João Magalhães, CEO da ubbu.

João Magalhães ©ubbu

Criada para colmatar a falta de literacia digital desde os primeiros anos de ensino, a ubbu quer preparar todas as crianças para um futuro tecnológico, inclusivo e seguro.

Como nasceu a ideia de criar uma plataforma de ensino de programação e pensamento computacional para os primeiros ciclos do ensino básico?

A ubbu surgiu da constatação de um problema estrutural e crescente: a falta de competências digitais nas novas gerações, sobretudo nos contextos escolares mais vulneráveis. Antes mesmo de o tema dominar a agenda educativa e política, a equipa fundadora da ubbu, então integrada na Code for All, identificou que o ‘gap’ existente entre as competências digitais procuradas no mercado de trabalho e as competências dos jovens à procura de emprego deveria ser endereçada logo nos primeiros anos de escolaridade, num momento em que ainda era possível intervir de forma eficaz e preventiva.

A maioria dos programas escolares não incluía qualquer abordagem estruturada à programação ou ao pensamento computacional nos primeiros ciclos do ensino básico. Esta ausência deixava milhares de crianças sem ferramentas fundamentais para compreender e actuar no mundo digital, aprofundando desigualdades e comprometendo o seu futuro académico e profissional.

Foi com esse propósito que nasceu a ubbu: resolver o desafio da falta de competências digitais antes de isso ser um problema. Ou seja, preparar desde cedo todas as crianças, independentemente do seu contexto, para um mundo em que o domínio da tecnologia, da lógica e da literacia digital será tão essencial como saber ler ou escrever.

De que forma procuram combater a falta de literacia digital e o desalinhamento entre a escola e as exigências do mundo actual?

Vivemos numa era profundamente digital, mas a literacia digital continua a ser um dos grandes desafios sociais do nosso tempo. Em Portugal, aproximadamente 56% da população possui competências digitais básicas, segundo o Índice de Economia e Sociedade Digital da Comissão Europeia. Esta realidade agrava-se em contextos socioeconómicos vulneráveis, onde o acesso a dispositivos, Internet e educação tecnológica é limitado. Paralelamente, as escolas enfrentam dificuldades em acompanhar o ritmo de mudança tecnológica, resultando num desalinhamento entre o que é ensinado e as competências exigidas no mundo do trabalho. O Fórum Económico Mundial estima que 65% das crianças que hoje entram na escola vão trabalhar em profissões que ainda não existem.

Esse desalinhamento deve-se à ausência de interesse ou esforço das escolas?

Há muitos professores motivados para ensinar estas matérias mas que consideram as ferramentas demasiado complexas ou pouco adaptadas à sua realidade, sendo necessário um esforço e tempo significativo para adaptar e incorporar estas matérias na sala de aula. É precisamente para ultrapassar esse obstáculo que a ubbu foi desenhada desde o início para garantir que qualquer docente, mesmo sem formação na área, consegue utilizar a plataforma com confiança e eficácia. Capacitar os professores com ferramentas simples, acessíveis, bem estruturadas e adaptáveis ao currículo escolar, permite que a ubbu seja integrada na sala de aula de forma simples e relevante para todos. Acreditamos que esta é a forma mais eficaz de garantir uma sociedade digitalmente preparada, segura e inclusiva: começar cedo, com todos os alunos a terem acesso a uma educação digital de qualidade, independentemente do seu contexto. Através de uma plataforma gamificada, a ubbu ensina ciências da computação, programação e competências digitais essenciais a alunos do 1.º e 2.º ciclos do Ensino Básico, preparando-os não só para o mercado de trabalho do futuro, mas também para uma participação cívica mais informada e consciente.

Ao promover competências como lógica, resolução de problemas e navegação segura no mundo digital, a ubbu contribui para elevar os níveis de literacia digital e para reforçar a segurança digital das novas gerações. O impacto é comprovado: 69% dos alunos evoluíram do nível básico para o intermédio em literacia digital e houve um aumento de 17% nos resultados a matemática. Com mais de 360 mil alunos impactados em vinte países, a ubbu prova que é possível e necessário democratizar o acesso à educação digital desde cedo, para garantir igualdade de oportunidades num mundo cada vez mais tecnológico.

Porque decidiram apostar em escolas públicas e, em especial, nos Territórios Educativos de Intervenção Prioritária?

Decorre da própria missão fundadora da ubbu: promover impacto social real através da democratização do acesso à educação digital. Desde o início, definimos como prioridade chegar onde o problema era mais urgente, às escolas com menos recursos, professores sem formação tecnológica e alunos em risco de exclusão digital. Por isso, trabalhar com escolas públicas e capacitar docentes não especialistas foi um pilar estratégico desde o arranque do projecto.

Com a implementação da plataforma em contexto real e em articulação com a Direcção-Geral da Educação, investidores sociais, EMPIS e outros parceiros, percebemos que podíamos aprofundar ainda mais o nosso impacto ao dedicar atenção especial às escolas TEIP. Foi neste diálogo com o ecossistema educativo que confirmámos o elevado potencial da ubbu para responder aos desafios específicos destes contextos. As escolas TEIP têm frequentemente uma elevada percentagem de alunos estrangeiros, onde o português não é a primeira língua. Nestes casos, a ubbu tem funcionado como uma ponte para a integração linguística e social, graças à sua abordagem visual, interactiva e multilíngue. Por outro lado, muitos dos alunos apresentam percursos escolares mais irregulares ou experiências negativas com métodos de ensino tradicionais. A gamificação e a lógica por blocos da ubbu despertam o interesse destes alunos, motivam-nos a participar e ajudam os professores a criar uma relação mais positiva com a aprendizagem.

Como é que a plataforma foi desenhada para ser acessível e útil a professores sem formação tecnológica?

A ubbu adota uma abordagem ‘chave-na-mão’: os conteúdos estão prontos a usar, estruturados por ano lectivo e organizados em aulas sequenciais, com vídeos, actividades gamificadas, quizzes e projectos interdisciplinares. Cada aula vem acompanhada de um plano de aula detalhado, com objectivos pedagógicos claros, sugestões de dinâmicas e tempos estimados e materiais complementares, o que reduz significativamente a carga de preparação do professor. A interface é simples e intuitiva, e o ensino da programação é feito com blocos lógicos visuais, dispensando linguagem de código complexa.

Para reforçar esta acessibilidade, a ubbu trabalha com a Associação Nacional de Professores de Informática, com quem desenvolve acções de capacitação dirigidas a professores. Estas sessões não se limitam ao uso técnico da plataforma, mas abrangem também competências digitais básicas, permitindo que os docentes se sintam preparados para responder às dúvidas dos alunos, dinamizar as aulas com confiança e acompanhar o progresso das turmas. Complementarmente, a plataforma fornece relatórios e ferramentas de apoio contínuo, como manuais, tutoriais e suporte técnico. Este modelo formativo e pedagógico garante que todos os professores, mesmo sem experiência prévia na área tecnológica, podem tornar-se agentes de mudança na transição digital da educação, contribuindo para uma escola mais inclusiva e preparada para os desafios do século XXI.

Quais foram os principais desafios no desenvolvimento de uma solução tecnológica, sobretudo porque a apresentam como inclusiva e escalável?

Do ponto de vista tecnológico, a inclusão e acessibilidade exigiu decisões técnicas. A plataforma foi desenhada para funcionar em computadores com baixa capacidade, comuns em muitas escolas públicas, e inclui uma função de login em dupla, que permite que dois alunos partilhem o mesmo dispositivo, sem comprometer a experiência de aprendizagem. Integramos ainda funcionalidades como o text-to-speech, útil para alunos que ainda não dominam a leitura, e diferentes tipos de letra, pensados para apoiar alunos com dificuldades específicas, como a dislexia.

Mas a inclusão vai além da tecnologia, é sobretudo um desafio de acesso. Por isso, os projectos financiados têm sido decisivos para garantir que a ubbu chegue a escolas em territórios vulneráveis, sem custos para os alunos ou professores. Um dos principais obstáculos foi o investimento inicial necessário para garantir que a plataforma pudesse ser acessível e de qualidade desde o início. A entrada no sistema público de ensino revelou-se um processo moroso, com ciclos de decisão longos e um elevado grau de exigência técnica e pedagógica. Para ultrapassar este bloqueio e acelerar a adopção da ubbu em escolas públicas, optámos por recorrer a métodos de financiamento alternativos como Títulos de Impacto Social e parcerias para a inovação social, com financiamento do Portugal Inovação Social, PT2030, União Europeia e investidores sociais. Estas iniciativas foram fundamentais para demonstrar o valor da solução em contextos reais e chegar a comunidades onde o investimento directo seria difícil de concretizar.

Por fim, para que a solução seja verdadeiramente escalável, foi essencial que a plataforma fosse ‘chave-na-mão, permitindo que qualquer escola a implemente de forma autónoma, sem depender directamente da nossa equipa. Esta combinação de acessibilidade, apoio externo e design funcional é o que tem permitido à ubbu crescer de forma sustentável, mantendo o foco na equidade e no impacto.

A ubbu está presente em mais de vinte países. Como se adapta às diferentes realidades pedagógicas?

A adaptação assenta numa combinação de trabalho com parceiros locais, flexibilidade da plataforma e alinhamento com padrões pedagógicos internacionais. Fora de Portugal, a ubbu trabalha com uma rede de distribuidores e parceiros locais, que conhecem de perto as especificidades culturais, linguísticas e pedagógicas de cada região. É através deste diálogo contínuo que identificamos as necessidades concretas de cada contexto e fazemos os ajustes necessários. Em alguns casos, esta adaptação é feita a nível visual e simbólico, por exemplo, através da ilustração da cidade virtual da plataforma, que pode incluir elementos mais próximos da realidade local. Noutros, é feita através de propostas de trabalho específicas para os alunos realizarem na ferramenta de projectos, promovendo a ligação com temas locais ou desafios da comunidade.

Paralelamente, a equipa pedagógica estuda os currículos nacionais de cada novo país para mapear como os conteúdos da plataforma se alinham com os objectivos e standards educativos locais. Com base nesse mapeamento, são criados materiais de apoio direccionados aos professores, que facilitam a integração da ubbu nas suas práticas lectivas. Essa contextualização permite que a plataforma seja usada tanto como ferramenta curricular, como em actividades extracurriculares ou em aulas de cidadania. Importa ainda referir que a Ciência da Computação e a Programação seguem directrizes internacionais relativamente uniformes, com forte influência dos modelos dos EUA e do Reino Unido, o que facilita a implementação transversal da ubbu em diferentes sistemas educativos. Esta base comum permite manter a consistência da proposta pedagógica, ao mesmo tempo que se respeitam as particularidades locais.

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